Mulheres do início do Século passado iniciavam uma trajetória de quebras de paradigmas na cidade de Santos
Santos, 5 de março de 1914. Anella Bersantti dava entrada a um pedido inusitado, junto à Prefeitura de Santos, numa carta protocolarmente endereçada ao então prefeito Carlos Luiz Affonseca. A jovem de origem italiana, nascida em Bolonha, desejava poder exercer na cidade portuária uma profissão completamente dominada pelos homens: a de chauffeur de praça. A solicitação, transformada em processo administrativo, de número 1215, foi protocolada no mesmo dia e dentro de um mês em que a discussão do papel da mulher na sociedade já vinha, ainda que timidamente, sendo discutido pelas sociedades ocidentais.
Dentro da administração santista, a solicitação de Anella despertou grande curiosidade. Ela foi chamada, então, para realizar testes que avaliariam sua aptidão para a função almejada. Anella, porém, não era uma “marinheira de primeira viagem”, pois já era possuidora de dois “diplomas” de chauffeur, sendo um deles emitido em Bolonha, Itália, e o outro em São Paulo, a capital bandeirante que abrigava então uma enorme massa de italianos. A jovem Bersantti, no entanto, queria conduzir veículos pelas ruas de Santos, dedicando-se à profissão de motorista para servir ao público.
Após pagar os emolumentos (taxas), Anella realizou seu exame (importante ressaltar que nessa época, eras as Prefeituras quem expediam licenças para dirigir), no dia 27 de março. Ao final dos testes teóricos e práticos, o inspetor chefe municipal assim despachou o resultado: “Dona Anella Bersantti apresentou-se ao exame de chauffeur e mostrou-se hábil em dirigir qualquer veículo automóvel e é conhecedora de todas as peças que interssam ao movimento do carro, sendo portadora aprovada e também apresentou os cartões de chauffeur que possui da Europa e São Paulo. Santos, 27 de março de 1914. Assina: Antonio Pereira Franco”.
O processo 1215, imediatamente ganhou uma anotação especial: “Sim (ao pedido). Santos, 29 de março de 1914”. Com isso, Anella Bersantti rompia uma barreira extraordinária e passou a circular com seu potente Berliet Phaeton de placa “48”.
Repercusão internacional
A notícia sobre a conquista de Anella Bersantti em Santos atravessou o Atlântico. Num artigo sobre feminismo reproduzido pela revista “A Fita”, de 9 de abril de 1914, o feito da jovem italiana foi comparado ao de outras mulheres que rompiam paradigmas no Velho Mundo, como Adelina Pertici, que conquistou o posto de primeira tabeliã do mundo, mencionada como um feito notável em Roma, desafiando as convenções de gênero no campo jurídico; ou de Miss Anny Robert, que adotara a profissão de açougueira (carniceira) na Inglaterra, uma escolha profissional inusitada para mulheres na época, destacando-se em um serviço considerado pesado e exclusivo dos homens, isso sem falar dos inúmeros outros casos de mulheres-cocheiro e mulheres-chauffeur, registrados em grandes centros, como Londres e Paris, assumindo o papel de condutoras de carruagens e de motoristas, evidenciando um sinal da crescente presença feminina em profissões antes reservadas exclusivamente aos homens.
Dizia parte do artigo: “Depois de séculos e séculos de escravidão moral, a mulher se rebela contra as velhas leis tirânicas e entra na vida. Alguém pode objetar que de Eva até hoje os representantes da outra metade do gênero humano têm entrado até demais na nossa existência, a ponto de deixar traços indeléveis… mas esse alguém pode ser um ingênuo. De fato, a mulher nem sempre se sujeitou às humilhantes condições de esposa e de mãe – pagando um verdadeiro tributo de afeto e de carinho ao tirano, sempre desconfiado e respeitoso, sempre ingrato, sempre pronto a debelar com a força brutal de um cabresto as suas aspirações para os altos ideais da moda e da coqueteria.
Abaixo a vida doméstica! Abaixo os graciosos flirts de salão, para conquistar os corações masculinos! Abaixo as carícias condenadas dos namorados, principalmente a luta entre o pudor e o desejo! Endossem a beca dos advogados, a pena dos copistas ou a espada do soldado; trabalhem sobre cadáveres com o bisturi dos cirurgiões; reivindiquem, enfim, os seus direitos à causa comum, saindo de uma vez dessa lúrida prisão que é a casa – onde viveram até agora numa humilhante anestesia moral. Este é o grito da mulher moderna..”
A trajetória de Anella Bersantti em Santos ressoou como um marco inaugural, inspirando conquistas semelhantes aqui e em todo o vasto e diversificado território de um Brasil tropical, efervescente e ainda fortemente marcado por estruturas patriarcais.
Outras bravas santistas
Ao longo da rica história de Santos, inúmeras outras mulheres deixaram suas marcas, como ainda deixam, para o orgulho de uma terra demograficamente feminina. Além de Anella, como não falar de Edméa Dezzone (1940), uma heroina da aviação e precurssora das mulheres nos céus do país (já falei dela aqui na coluna), ou Maria Baccarat, que, em 1939, se tornou a primeira mulher advogada da história santista; ou Zeny de Sá Goulart, nossa primeira vereadora (1936); Telma de Souza, nossa primeira prefeita (1987); e Noêmia Waldomira Luís, a primeira a exercer o cargo de secretária municipal (1969), abrindo passagem para a participação feminina na política. Isso, obviamente, sem falar de outras áreas, como na cultura, no esporte, na vida social, nas causas diversas, etc. Seria até injusto listar nomes aqui, pois certamente faltaria espaço e me arriscaria a esquecer nomes para relacionar um Panteão digno para tantas santistas guerreiras. E eu não quero levar bronca, por que aqui, meus amigos leitores, são elas quem mandam!
Requerimento assinado por Anella solicitando fazer teste para obter licença que lhe daria condições de exercer a profissão de chauffeur